Cotidianamente a seara criminal enfrenta erros judiciais motivados por interpretações inteiramente literais dos dispositivos previstos pela Legislação Penal. A área, que trata exclusivamente de direitos e garantias fundamentais do ser humano, uma vez que o bem indisponível a qual se discute é a sua liberdade, deve prevalecer de certos cuidados e respeitar as regras do jogo para que as decisões não contemplem severas injustiças sociais.
O respeito às regras do jogo deve, além de obviamente se basear no Código que as rege, recorrer a outros métodos interpretativos, em especial as ciências que se dedicam ao estudo da vida social humana, como exemplo da sociologia e da psicologia.
Trazendo essa reflexão para a prática, importa analisar os fundamentos teóricos que culminaram em histórica decisão da sexta turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida pelo Min. Relator Rogério Schietti Cruz, em que concedeu habeas corpus (712.781) para absolver um indivíduo condenado por roubo e corrupção de menores com base apenas no seu reconhecimento fotográfico, que por vez, teria sido realizado em desacordo com a Lei.
O Código de Processo Penal, dispõe em seu artigo 226 que quando houver a necessidade de se realizar o reconhecimento de pessoas, deverá ser feito da seguinte forma:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Pelo que se denota, o artigo mencionado elenca a procedibilidade do reconhecimento de pessoas, não indicando em momento algum, a confiabilidade absoluta da sua prova.
Ao verificar os termos do voto relator no caso em análise, constata-se que a vítima reconheceu um réu na Delegacia de Polícia, e o fez novamente na fase judicial, supostamente sob o rito legal do art. 226 do CPP, o que levou a condenação em 1ª instância. Já em fase recursal, o Tribunal de Justiça manteve a condenação, afirmando que o reconhecimento realizado em sede policial foi feito mediante fotografia que circulava em redes sociais e que o reconhecimento em juízo dispensaria as formalidades previstas no CPP. Ou seja, a condenação em 1ª e em 2ª instância foi baseada exclusivamente no reconhecimento fotográfico.
Quando se fala em reconhecimento de pessoas, logo nos vem à mente, cenas de filmes norte-americanos, onde os indivíduos são colocados em fileiras em sede policial dentro de uma sala, e a vítima os reconhece do outro lado do vidro. Pois bem, é exatamente isso que o inciso II do art. 226 pretende realizar. Entretanto, este momento deve ser posterior ao primeiro inciso, que abrange o fato da vítima necessitar descrever o indivíduo que lhe vem a memória, para então, realizar eventual reconhecimento “cara a cara”.
Além disso, segundo a doutrina, a organização das pessoas que serão reconhecidas deverá respeitar um quantitativo mínimo de 5 indivíduos, os quais devem conter semelhanças físicas ao descrito pela vítima. O problema se concentra justamente quando este reconhecimento é realizado através de fotografias, como já advertiu Aury Lopes Jr:
Exemplo típico de prova inadmissível é o reconhecimento do imputado por fotografia, utilizado, em muitos casos, quando o réu se recusa a participar do reconhecimento pessoal, exercendo seu direito de silêncio (nemo tenetur se detegere). O reconhecimento fotográfico somente pode ser utilizado como ato preparatório do reconhecimento pessoal, nos termos do art. 226, inciso I, do CPP, nunca como um substitutivo àquele ou como uma prova inominada.
Ainda que o Código de Processo Penal preveja o modus operandi do reconhecimento de pessoas, muitos Tribunais tem decidido por admitir o reconhecimento exclusivamente feito por fotografias, desconsiderando a Lei e a doutrina. Talvez por isso, se faz tão relevante a decisão proferida pela corte cidadã. De certo, alguns questionamentos podem surgir no que se refere ao motivo da inadmissibilidade do meio fotográfico a fim de sustentar o artigo 226 do CPP.
Quanto à isso, destaca-se trecho de artigo cientifico produzido pela professora da Universidade Alberto Hurtado, Janaina Matida acerca do reconhecimento fotográfico e presunção de inocência:
No que refere especificamente à prova de reconhecimento, a preservação do mito da “memória-máquina filmadora” significa aquiescer a falsos negativos e a falsos positivos, isto é, à absolvição de culpados e à condenação de inocentes. De outro lado, compreender as limitações constitutivas da memória humana torna necessária a tomada de uma série de providências no âmbito probatório – seja no que refere à produção, seja no que refere à valoração probatória, seja, finalmente, no que se refere à adoção de uma decisão sobre os fatos.
A dita “memória-máquina filmadora” citada no trecho acima, torna-se inviável quando se tem o que a ciência denomina de “falsas memórias”, ou seja, recordações distorcidas de algum evento, sendo um simples achismo da mente.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Psiquiatria do Paraná3, os principais motivos que acarretam na falsa memória são: Imprecisões na percepção, informações que interferem na gravação dos eventos, novas informações ambíguas ou erradas, erros de atribuição e as emoções.
Todos esses motivos são corriqueiramente vivenciados por pessoas que acabam de sofrer da prática de um ato criminoso, eis o motivo pelo qual não se deve imediatamente submetê-las à um processo decisório frente à fotografias de diversos indivíduos, uma vez que a possibilidade da escolha ser feita com base nos motivos mencionados é quase absoluta.
Reconhecimento de pessoas, depoimento testemunhal, além de outros meios de provas advindos pura e exclusivamente da mente humana, fazem parte de um standard probatório conhecido como provas dependentes da memória, que dialogam consequentemente com a psicologia, uma vez que necessitam de uma análise subjetiva acerca de sua validade.
O próprio método de reconhecimento de pessoas carrega certa irrepetibilidade, haja vista que segundo a ciência, quando um indivíduo visualiza o rosto de alguém, automaticamente o vincula ao evento vivenciado. Sendo assim, só seria possível realizá-lo uma única vez, pois vários reconhecimentos estariam interligados a sucessivas vinculações do primeiro rosto ao mesmo evento
É de suma importância verificar que os procedimentos realizados em desconformidade com a lei ocasionam demasiadas condenações injustas e deslegitimam a real função do processo penal. À título de exemplo, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) apresentou (dois) relatórios comprovando que em 2020, ocorreram aproximadamente 90 prisões injustas no Brasil.
Este relatório nos traz uma situação em que a vítima realizou o reconhecimento do acusado após 5 meses do acontecimento do fato, além de outra em que o reconhecimento teria sido feito através de telefone celular de um policial. Além disso, em um total de 58 acusados, apenas 10 eram brancos e 50 deles foram submetidos à uma prisão preventiva, sendo a maioria desses já possuidores de anotações relativas o fato tratado, o que reforça o estigma do “tipo criminoso”.
O reconhecimento fotográfico é repleto de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, uma vez que não restam dúvidas das inúmeras falhas e o risco das já mencionadas neste texto, falsas memórias. Todavia, o problema não está na simples realização do reconhecimento de pessoas, uma vez que abarca previsão legal.
Na verdade, o empecilho do procedimento é a forma em que é feito, e além disso, se é a única motivação condenatória. Para Nucci, por exemplo, o Juiz não deve condenar alguém somente pelo depoimento da vítima, aí inserido o reconhecimento fotográfico, a não ser que este esteja acoplado de demais provas contundentes.
É preciso contar com o fator de deturpação da memória, favorecendo o esquecimento e proporcionando identificações casuísticas e falsas. O juiz jamais deve condenar uma pessoa única e tão somente com base no reconhecimento feito pela vítima, por exemplo, salvo se essa identificação vier acompanhada de um depoimento seguro e convincente, prestado pelo próprio ofendido, não demovido por outras evidências.
Portanto, o que se pretende aqui é, única e exclusivamente, demonstrar que os dispositivos do Código de processo Penal devem ser interpretados conforme o Direito necessita, ou seja, subjetivamente. A ciência jurídica, quando trata das relações humanas, em especial neste caso ao crime, deve se ater as inúmeras condições que a sociedade e o réu estão inseridos.
As análises legais, assim como a que o Superior Tribunal de Justiça realizou no HC em referência, necessitam levar em consideração as pautas discutidas no sistema social em que se vigora, além de indubitavelmente, às garantias fundamentais que condicionam ao direito de um cidadão.
REFERÊNCIAS:
- JUNIOR, Aury Celso Lima L. DIREITO PROCESSUAL PENAL. Editora Saraiva, 2021. Pg. 216︎
- MATIDA, Janaina; CECCONELLO, William W. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 7, n. 1, p. 409-440, jan./abr. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.506︎
- https://institutodepsiquiatriapr.com.br/blog/falsas-memorias-o-que-sao-e-como-se-formam/︎
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NUCCI, Guilherme de S. Manual de Processo Penal. Volume Único. Grupo GEN, 2023.
COAUTOR: Lázaro Bertolini Da Rós – Graduando em Direito pela Universidade Vila Velha.